segunda-feira, 25 de maio de 2009

Momento trigésimo sexto

Anotação sobre uma fatídica tarde. Um trecho:

"Da janela, o repetido lamento, seu mínimo rosto desbotado e uma lembrança indecifrável a lhe empurrar mais tormento. Sem olhar para os ponteiros, ignorava tempo e engolia a tarde."

domingo, 24 de maio de 2009

Momento trigésimo quinto

Nela ele se anula, atravessa a noite. Sente-a sua, mas por hora é só uma singular reminescência, separada do real por seus fantasmas e uma rua.

terça-feira, 3 de fevereiro de 2009

Momento trigésimo quarto

(De rerum natura)
Quanto mais você se eleva da Terra, melhor. Eis uma bela razão para estudar Astronomia.

(Sobre a natureza das coisas)
Quanto mais Samuel estuda Astronomia, mais bela é a única razão para olhar para a Terra.

Eis a vizinha, pela sua vidraça. Exala a química da vida sem esquecer da física do mundo. Lentes que se enchem do que é pleno. Consegue lembrá-la toda, é digna de registro. A bem dizer não recorda qual foi o último livro que leu. Não esquece seus movimentos, aquece-se com eles. Lembra-se dos olhos, da pele, da nudez. Descansa, bela, talvez porque o dia amanhã vai lhe cansar. Uma luz suave no quarto, um sopro despenteia a camada fina da cortina.
Hoje tudo está bom, pela vidraça a... parece melhor.
Só por ela. Só. Ela.

segunda-feira, 2 de fevereiro de 2009

Momento trigésimo terceiro

Uma mulher de cabelos negros e soltos, bastante soltos, cruza com Samuel na esquina. Esbarram-se de leve. Ele segue a correr. Ela balança a cabeça, ajeita o casaco castanho, deixa cair um envelope. Querendo, assim, sem querer.

Momento trigésimo segundo

Quando Samuel completou quinze anos, a menina, no dia, lhe apareceu. Falava coisas desconexas, sílabas sobrepostas; meio sibilante, meio tatibitati. Não estava na parede do seu quarto. Estava na livraria. Saiu de dentro de um livro e ordenou que Samuel o comprasse. Não com palavras, mas com gestos. Samuel não se assustou. Não tanto quanto da primeira vez. Então já era adolescente, e adolescentes são falsos não fragilizados. Mas ficou perturbado. Por mera rebeldia, se recusou a adquirir o livro ordenado. A menina fez um sinal, sibilou algo truncado. Samuel entendeu: você será castigado!

domingo, 1 de fevereiro de 2009

Momento trigésimo primeiro

Entram. Quatro homens, uma mulher, dois cachorros. No meio da sala, ele, estático. Um dos cachorros, o branco, peludo, feito uma ovelha bonsai, já sobre a poltrona vermelha, com os dentes, rasga-lhe o braço estofado. O outro, malhado, de olhos esbugalhados e cara de velho demente, de perna erguida urina ao pé do abajur. Marcar território, conquistar. Homens e cães. Homens cães. A vizinha a falar sem parar. O chaveiro a exigir o seu dinheiro. Tem pressa, alega. Muitas casas para entrar. Deflorar. Homens. Homens sem mães. O zelador a tentar a todos acalmar. Lorival a rir; especular. Atento; arguto o olhar. Filhos. Todos. Filhos de mães. Cães. Filhos de mães; outras. Filhos de éguas; velhas; potras.

O porteiro vai até a janela. Curioso. Grita loquaz: Mas o que temos aqui?!, aproxima o rosto. Vai metendo o olho. Samuel arranca-se de si mesmo, solta um uivo de savana, atira-se para frente; a mão espalmada no ar; a luneta voando de lado; Samuel por cima do cão; a luneta caída ao chão.

A vizinha agora a gritar; argumentos em prol do seu lar; misturados ao uivo do cão, que, então, a Samuel tenta abocanhar. O chaveiro ainda na porta, dizendo que vai ter de matar se ninguém resolver lhe pagar. O zelador de mãos na cabeça, de repente fita um anel de prata sob a estante de madeira escura. Lorival, ao meter a cabeça para fora da janela, de dentro do bolso da sua calça amarela, deixa cair uma peça importante; Samuel vê, percebe o que é, e pega o envelope em um rápido instante. Treme por dentro, tenta se controlar. O suor, de todos os poros, passa a se derramar. Urina, urina, urinar. Consegue... consegue na bexiga a vergonha estancar. Levanta-se rápido e, antes da taquicardia chegar, lança-se porta a fora, a boca seca a secar. Dá dois passos no corredor, dribla a sensação de horror, desce as escadas, passa pela porta aberta do prédio, esbarra em alguém a entrar no portão, pisa na calçada molhada, aperta o envelope na mão, olha em qualquer direção e põe-se a correr, a correr, meio fraco, meio voraz, a correr e a correr. Sem sequer olhar para trás.

Momento trigésimo

Neste ano a Páscoa vai ser dia 12 de abril. É sempre o primeiro domingo depois da Lua Cheia de/logo após 21 de março, equinócio de primavera no hemisfério norte. Ess...a. Essa da Lua Cheia não é, em exato, real, real, mas a definida nas tabelas, belas. Eclesiásticas. Não levam à risca o movimento complexo, plexo da Lua, apesar de ser fácil calcular, cal, cu, lar.

Papa Gregório XIII; concílio de Nicéia; 325 d.C.; imperador, dor, romano Constantino. Regras deles.

A Páscoa nunca acontece antes de 22 de março nem depois, pois, de 25 de abril. Terça-feira de Carnaval, aval: 47 dias, dias, antes, antes da Páscoa, da Páscoa. Quarta-feira de Cinzas, Cinzas, Cinzas 46.

De volta ao que interessa, essa.

Janela, nela. Já, nela, dela, ela.

Restrigimo-nos aos nossos desejos pessoais e à afeição por, por, umas, umas, poucas pessoas, poucas, pessoas próximas. E daí, Seu Samuel, muel Luis borges?!

Foco.

O prédio treme. Essa. Ess...a. Ess’A. Ess’A Coisa. Embaralha, embaralha, ralha, ralha, ralha... Seu Samuel: vamos entrar!!!

sábado, 31 de janeiro de 2009

Momento vigésimo nono

Neste ano a Páscoa vai ser dia 12 de abril. É sempre o primeiro domingo depois da Lua Cheia de/logo após 21 de março, equinócio de primavera no hemisfério norte. Essa da Lua Cheia não é, em exato, real, mas a definida nas tabelas. Eclesiásticas. Não levam à risca o movimento complexo da Lua, apesar de ser fácil calcular.

Papa Gregório XIII; concílio de Nicéia; 325 d.C.; imperador romano Constantino. Regras deles.

A Páscoa nunca acontece antes de 22 de março nem depois de 25 de abril. Terça-feira de carnaval: 47 dias antes da Páscoa. Quarta-feira de Cinzas, 46.

De volta ao que interessa.

Janela.

Restrigimo-nos aos nossos desejos pessoais e à afeição por umas poucas pessoas próximas. E daí, Albert Einstein?

Foco.

O prédio treme. Ess’A Coisa. Embaralha.

sexta-feira, 30 de janeiro de 2009

Momento vigésimo oitavo

Dois dias se passaram sem que ela saísse de casa. A chuva fora intermitente. O frio avassalador. As almas na rua perambularam, poucas. As cidades foram consumidas por abutres insaciáveis. As vítimas do medo se multiplicaram. Os bárbaros tornaram-se ainda mais bárbaros; os doces, menos doces. Ácidos, bases, sais. Íntimos de menos; pólvora demais. Uma culinária rápida onde cada prato tornou-se envelope recheado. Encontros, desencontros, tudo muito inusitado. Os sinais de trânsito viram-se em um só; de ida, em pó. Doída, um nó. Cada referência, cada transparência, aderência, carência, cada cara ausência, foi medida para um pequeno caos. Parada para dentro; fora; um (des)pensamento. De Porto Alegre ao Laos; tudo infectou-se de pequenas causas; causas rasas; mínimas brasas; na chuva. Do Timor Leste a Budapeste; nada ficou igual. Não como era antes. A vida e seus momentos mutantes. Alguns encontraram aqui, acolá. Outros mais ali, para lá. Outros ainda viram e deixaram passar. A vida em seus passos; passantes. Tudo que se planta, adubando dá; a não ser quando adubo, só, há. Mas as sementes jamais são em vão. E vão. Ainda que não frutifiquem, ao menos restos darão. O que se pode lembrar; o que se deve esquecer, juntos, parte do todo farão. E, passados anos, décadas, rugas, ciclos; ou dias – dois – , horas, minutos, piscares de pálpebras, segundos, raros instantes – retornarão. Mas nada, não, nada como estava então; nada como era antes.

quinta-feira, 29 de janeiro de 2009

Momento vigésimo sétimo

Samuel nem sempre fora assim. Mas, depois do dia em que, ainda com tenros dez para onze anos, viu pela primeira vez os habitantes da parede do seu quarto, todos sorrindo para ele e uma menina a resmungar sílabas amontoadas sem sentido algum, ao menos para um garoto assustado, teve certeza de que a sua vida não seria a vida que todos levavam, ou pretendiam levar. Compreendeu, ali, naquele instante, que o mundo, o seu mundo, seria muito particular. Assimilou de imediato que o dia-a-dia, a mediocridade, o comezinho, os pequenos prazeres e o viver sob padrões não estavam mais acessíveis para ele. E lamentou. E buscou esquecer. E esforçou-se para torcer pelo “seu time do coração”; e para ver o domingo pela televisão. E sentiu-se injustiçado. E por vezes tombou irado; amaldiçoando Deus, deuses, seres alados e o diabo. Amaldiçoou a si mesmo e a seus pais, por terem, na vida, se encontrado.

Momento vigésimo sexto

Quando Samuel era pequeno, queria ser astronauta. Muitos meninos queriam. Um dia, já um pouco maior, deu-se conta de que havia nascido em um país de terceiro mundo. Então passou pela cabeça dele, quando crescesse, ser jogador de futebol. Mas logo, por conta dos escassos convites para jogar no terreno baldio em frente a sua casa, ou mesmo no pátio da escola, pode precisar que, também essa, não seria a sua vida profissional. Pensou em ser bombeiro, médico, veterinário e até padre. Cursou Física na universidade, mas não concluiu por conta de problemas pessoais. Em termos mais específicos: A Coisa.

Sua mãe, ou seu pai, tinham de levá-lo para assistir as aulas, e esperá-lo no estacionamento da universidade até que ele saísse, para conduzi-lo de volta para casa. Todos os dias. Incluindo os sábados pela manhã. Foram meses, semestres, anos intermináveis. Para eles e para ele. Não saía de casa para dar sequer uma volta no quarteirão. A Coisa podia acontecer a qualquer momento, e em qualquer lugar. E se estivesse só, desacompanhado do pai ou da mãe, poderia sucumbir a si mesmo, e cair morto, ou louco, o que, para ele, parecia ainda pior.

quarta-feira, 28 de janeiro de 2009

Momento vigésimo quinto

O som do toque do interfone vem em ondas, retorna qual repuxo em mar de bandeira vermelha. Samuel abre um olho, abre outro. Ouve a campainha de casa; batidas secas na porta. Percebe seu nome sendo chamado ao longe, e já bem perto: SEU SAMUEL!!! SEU SAMUEL!!! ESTÁ TUDO BEM AÍ DENTRO?! ABRA, POR FAVOR... DIGA ALGUMA COISA... SEU SAMUEL!!! Olha pela janela basculante; é dia. Barulho de água. SEU SAMUEL!!! POR FAVOR, SEU SAMUEL!!! É UMA EMERGÊNCIA... Samuel olha para cima: o chuveiro em funcionamento; mandando água em direção ao seu corpo encolhido ao chão. Levanta-se abrupto, sai do boxe, escorrega, quase cai. O banheiro está inundado, a sala, o quarto, a cozinha, até na área de serviço há água. SEU SAMUEL, ABRA A PORTA, POR FAVOR!!! Volta-se para o chuveiro, quando pensa em desligar a torneira, a água cessa. Alguém teve a luz e a inteligência de fechar o registro geral do prédio. SEU SAMUEL!!! Vamos arrombar, deve estar morto o maluco!, ouve um voz feminina já perturbada pelos anos e o fumo. A vizinha de baixo. Ouve latidos agudos, ensandecidos; um arranhar de unhas na porta. A vizinha de baixo e seus cachorros chatos, pensa. Uivam e latem a noite inteira. SEU SAMUEL!!! Vamos meter o pé na porta... voz de homem agora. Tenta articular alguma coisa com a boca, mas não consegue dizer nada... Deixa comigo, outra voz de homem. Faz um esforço descomunal para falar ou mover-se do meio da sala, onde está, até a porta da rua. Não consegue sair do lugar. Tenta, tenta, tenta. Pensa, pensa, pensa. É UM... Está gelado. É DOIS... Quer chorar e não consegue. É TRÊS... Tem vontade de espirrar. E... O espirro não vem. AGORA!!! Ouve um estrondo. Atchim!!! SEU SAMUEL?! É O SENHOR?!?! Atchim!! volta a si. Sente um alívio: a porta ainda está no lugar. TUDO BEM AÍ?! Aqui é o Lori, ou melhor, o Lorival, o porteiro. O senhor pode abrir para nós?! Tem um vazamento no apartamento de baixo do seu. Temos que ver o que aconteceu. Temos de checar o seu apartamento. Está chovendo no apartamento de baixo... Seu Samuel, o senhor está me ouvindo?! Está me entendendo?! Estou falando um português bem claro?! O síndico já chamou o encanador... o, como se chama mesmo... o termo técnico, é... Hidráulico, sussurra a voz de mulher. É, é, isso mesmo, o hidráulico, pode abrir para nós?!...

Não, NÃO!!! Aqui ninguém entra, não, balbucia. Não, não pode, não dá... Mas seu Samuel, temos de
efetuar o conserto (Lorival olha para a moradora do quatrocentos e um, balança a cabeça afirmativo e sorri esperto, satisfeito com o fato de ter dito “efetuar o conserto”). NÃO, não dá não. Não vou abrir a porta... Então vamos ter de arrombar, Grita a velha, e os cachorros latem mais forte.

Momento vigésimo quarto

Olhando para todos os lados de forma compulsiva, Lorival desamassa o envelope pardo, abre e retira o conteúdo.

terça-feira, 27 de janeiro de 2009

Momento vigésimo terceiro

Samuel está agitado, andando de um lado para o outro. A persiana da sala do apartamento dela ainda continua fechada. Samuel dá socos na palma da própria mão. E agora?! E se ela não erguer mais a veneziana?! E se ela tentar e não conseguir?! E se a veneziana estragou?! Pode levar dias para mandar consertar!! Pode levar semanas para virem fazer o conserto!!! Pode levar séculos para as perdas serem reparadas!!!!! Pode ser que eu morra até lá, desespera-se; pode ser que eu fique louco. O chão principia querer sumir outra vez. A boca a secar. Um embrulho no estômago. Não, de novo não!!!!!!!, berra. Vai até a cozinha, abre a torneira da pia, mete a boca debaixo e bebe toda a água que consegue suportar. Começa a suar e a tremer. Oscila entre picos de sensações térmicas. Quente, frio, quente, frio, quente, frio. Sua, sua, treme. Vai para o banheiro, entra no boxe de roupa e tudo, abre o chuveiro. Quente, frio, quente, frio, quente, frio. Sua, sua, treme. A água corre em abundância inundando as suas roupas de lã. Sua, sua, treme. Vai perdendo as forças nas pernas; arriando o corpo escorado na parede coberta com azulejos. Desce até o chão. Sentado no piso do boxe, percebe uma lágrima; e logo uma cascata. Copioso, chora. Chora tudo. Chora todos. Chora os nadas e seus emaranhados. O choro excremento. A água do chuveiro a cair, densa, pesada, sobre o seu corpo estirado ao chão. Chora, impotente, chora. Cai de lado, abraça os joelhos, entrelaça as mãos.

Assim, como quem espera para vir ao mundo, permanece; chora, fecha os olhos e adormece.

Momento vigésimo segundo

Lorival, por sua vez, espera o LED vermelho referente ao apartamento quinhentos e um se apagar, olha para os lados, sorrateiro, como se alguém o estivesse a espreitar, levanta-se e dirige-se para a porta do prédio. Chega, pára, olha para os lados; para trás. Caminha até a porta externa, de ferro, protegida por um pequeno telhado de vidro translúcido; abre-a, caminha fingindo displicência até o meio da rua, olha para os lados; para cima. Em um golpe rápido, agacha-se, apanha o envelope amassado e enfia-o no bolso do casaco azul marinho, peça integrante do seu uniforme de trabalho. Ainda dissimulando indiferença, volta para dentro do prédio.

segunda-feira, 26 de janeiro de 2009

Momento vigésimo primeiro

Ela, para o alívio total de Samuel, acaba de entrar em casa. Samuel relaxa. arrisca até um sorriso para si mesmo. Gruda o olho na luneta. Parece nervosa. Agitada. Anda de um lado para o outro. Nem tirou as roupas e nem foi para o banho. O que estaria acontecendo?! Estaria em apuros?! Aproxima-se da porta, faz menção de sair outra vez. Samuel nem acredita. Nem bem chegou... De repente volta-se, ela olha pela janela, direto para a dele. Samuel contrai-se, enrijece todos os músculos. Fica imóvel. Nem respira. Ela vai até a janela; olha direto para a sua janela. Samuel impávido. Ela permanece ali, parada; o rosto contraído. Parece brava. Até na braveza contém doçura, pensa Samuel. Abre o casaco em couro, enfia a mão dentro, puxa algo como um envelope pardo, amassa-o e atira-o pela janela. Em seguida, fecha, pela primeira vez, a persiana, com força. Quase arrebenta tudo. Samuel ouve o estrondo de dentro do seu próprio apartamento. Ele movimenta a luneta, vasculha a calçada; passa para o meio da rua, remexe os paralelepípedos com o olhar; encontra. Aproxima-se com o zoom, acerta o foco. Sim, é um daqueles envelopes que ela coloca na bolsa ou dentro do casaco todo santo dia, e sai. Só pode ser. Consegue ler alguma coisa escrita por fora do envelope: AO ME... Está amassado. DROGA, esmurra o braço da poltrona vermelha. DROGA! Pensa que dizer droga ao invés de merda é um resquício dos vários anos vendo filmes estrangeiros dublados, pela televisão. Malditos tradutores, resmunga. O mundo é mesmo um farsa, pensa, atirando o corpo para trás.

Fita o teto e remexe as idéias. Raciocina que tem de fazer alguma coisa, urgente. Levanta-se, retira o interfone do gancho e: Percival?! Não, é Lorival!!!, responde o porteiro com voz de mocotó quente parado na garganta. Ah, sim, desculpa, mas... é que eu preciso de um favorzinho... aqui é do quinhentos e um e... Como se eu não soubesse, resmunga o porteiro. Sim, pois não senhor, pode pedir?!, tentando ser impessional sem deixar de ser irônico. É que, é que... será que o senhor (o porteiro, assim como ele, não é um “senhor”, tem apenas trinta e dois anos, cinco a mais do que Samuel, mas ele não tem como saber disso)... será que o senhor poderia pegar (a voz embargada)... será que o senhor poderia pegar um envelope amassado que... bem... que está no meio da rua... bem, aí na frante do prédio e... hãm... trazê-lo para mim?! Se... se, é claro, não for muito incômodo, é claro (maldito porteiro)... Pegar o quê?! Onde?!, retruca Lorival. É que... bem, não, nada não... deixa pra lá... obrigado assim mesmo (maldito porteiro). Desliga o interfone e começa a andar em círculos dentro de casa, praguejando contra o mundo: malditos porteiros; malditos tradutores!!!

Momento vigésimo

Retoma-se a si próprio, até onde pensa conseguir. Sente-se fraco, agora. Sem vontade. Sem idade. Olha a tela. Inerte. Por sorte não enviou a mensagem. Iria inventar, para cumprir os prazos. Afinal, precisa do dinheiro. Mas, o problema, de fato, é o quanto de verdade iria contido na invenção. O impasse da ficção. Eterno para uns. Lembra da primeira vez que A Coisa aconteceu.

Foi há sete anos. Havia saído de casa, estava a caminho de uma festa com amigos da faculdade. Tinha uma namorada. Morena, longos cabelos soltos, ao vento, sempre ao vento. Iria encontra-la por lá. Haviam se desentendido três dias antes. O relacionamento não ia bem. Talvez nem se gostassem tanto assim. Era agradável estarem juntos. Sentia-se bem. Na festa, se tudo acabasse, estava tranqüilo. Se continuasse, se dessem-se bem outra vez, tranqüilo também.

Passou em um pequeno restaurante para jantar antes de ir para a festa. Era cedo ainda. Pediu uma pizza, uma água mineral e esperou. De repente, do nada, sentiu um certo desconforto gástrico. Sem saber bem o porquê, sentia-se um tanto quanto aflito. Uma certa insegurança em relação a algo desconhecido. Tudo estava em aparente tranqüilidade em sua vida. As coisas iam bem mesmo. Estudos, amigos, festas, leituras; adorava ler. Apesar disso, uma sensação de vazio passou a tomar conta dos seus pensamentos. O enjôo aumentou de intensidade. Piorava a cada minuto. Do enjôo, passou a sentir uma opressão na entrada do estômago. E a pizza que não vinha! Uma taquicardia chegou de súbito. E foi crescendo. Suor nas mãos em abundância. A respiração entrecortada. E uma sede incontrolável. E a água que não chegava! Queria levantar-se dali mas estava paralisado. Sentia medo, muito medo. Pavor. Um suor gélido escorria pela testa, e um tremor incontido apossou-se de todo o seu corpo. A boca seca. Pensou que estava tendo um enfarte, que ia morrer ali mesmo, e encheu-se ainda mais de horror. A sensação era de perda total de controle do corpo, de desmaio iminente, de morte súbita e gratuita. E, sem mais, nem menos, os sintomas todos se multiplicaram de intensidade. Aí, então, veio algo como um tranco no peito, e tudo se intensificou ainda mais.


domingo, 25 de janeiro de 2009

Momento décimo nono

“Havia uma mulher que vestia roupas soltas, cabelos longos e modos gentis. Havia um rapaz com sede, muita sede... e permitia-se, vez por outra, pequenos sopros de vida. No coração dela: uma manhã de segunda-feira cinzenta; no dele: uma suspeita, um prolapso da válvula mitral. Ele a conhecia, ela não. Isso pode significar que ela era um tanto quanto fútil, pouco profunda, menos dada a introspecção. Mas não, quando ele diz que ele a conhecia; ela não, não quis dizer que ela não se conhecia, e ele sim, mas quis dizer que ela não o conhecia, mas sim ele a ela. E não ele a ele, também. Tão bem. Mas não tanto quanto desejava, a ela, porém. Conhecia seus passos, mas não seu cheiro; sua carne. Conhecia seus modos, mas não seus pensamentos, seus ímpetos. Conhecia o que pensava que conhecia, mas não suas manias. Via-a à noite, via-a de dia. Cobria-a assustada, feliz, tensa; em calmaria. Queria se aproximar, queria; mas a Coisa o impedia. Sede sente, sentia. Muita sede, assim, de repente. E o peito a formigar... Sede, mais sede... a mente a divagar... mais sede, mais sede... a boca a secar; seca, seca, secar... tudo outra vez, não, botava-se a lamentar. Tudo outra vez... não... as forças a lhe faltar, não... seca, seca, secar... a boca, sede, coração a saltitar... boca, seca, boca... sem ar...

E as obviedades, deveriam constar?! pensar, fazer tudo igual, é o certo?! É daí que nos retiramos a nós mesmos?! Nos sentimos alguém?! Fazemos parte, somos incluídos?! Somos concluídos?! Imbecilizar-se para integrar o todo é o caminho?!

Fome. Sede. Boca. Seca. Suor. Frio. Tremor. Tremor. Calor. Frio. Tremor. Náusea. Temor. Calor. Temor. Frio. Náusea. Tremor. Temor. A sala a rodar. Flutuar. Flutuar. Acima de si. O corpo. Suor. Frio. Calor. O corpo. Tremor. Girando. Girando. Acima de si. O corpo. O corpo. Caindo. Caindo. E ela a chegar. O corpo. Dentro de si. Sem ar. Sem ar. Temor. O corpo. Suor. Tremor. Sem ar. Sem ar. Chegar. Dentro de si. O corpo. Ela. Acima. De si. Suor. Tremor. Frio. Calor. Dentro. Girando. Ela entrando. O corpo. Caindo. De dentro. O corpo. Ela. Secar. Boca. Sem ar. Suor. Suor. Sem ar. Sem ar. Ela. Checar. Controle. Perder. Outra. Outra vez. Outra vez, não. Vai para o banho. Ela. Ou não. Não dá para ver. Os olhos turvos. Curvar. Ela. Ele. Outra vez, não. Sem ar. Sem ar. Sem paz. Sem coragem. Senão. Melhor. Pior. No vão. Da vida. Entre. A morte. Há vida. No vão. Loucura. Loucura. Não, não. Outra vez. No chão...

sábado, 24 de janeiro de 2009

Momento décimo oitavo

Abre os olhos, a cabeça um pouco pesada. O corpo mais leve. O apartamento todo em branco. Bruma. Aos poucos, as formas voltando ao normal. Os móveis em madeira escura. Já estavam ali quando da compra. Os pais acharam conveniente um apartamento mobiliado. Menos trabalho. Muito mais prático. O preço: quase de graça, disse o pai. O então proprietário havia perdido a esposa, dois filhos e a mãe em um acidente, e queria se ver longe das lembranças. Ali ele operava encontros furtivos, fuxicava, na época, a vizinhança. Vendeu por muito pouco e, logo depois, foi internado em um manicômio. Daí, quando o resto da família se deu conta, nada mais podia ser remendado. Os papeis assinados, dinheiro recebido, comprovantes em dia. O negócio não podia mais ser desfeito.

E agora, lá está ele. As formas retornando lentas. Imagens abafadas de um absurdo pesadelo. Samuel se levanta do chão, apoiado ao braço do sofá verde musgo. Considera que tenha fome, mas não tem essa certeza. Um cheiro forte de urina no ar. A roupa molhada da cintura para baixo. Olha lerdo para o teto, para a janela, para a luneta... sente um arrepio por todo o corpo, solta um uivo, corre para a poltrona, senta, percorre o apartamento da frente através da pupila estendida: MERDA, grita. Vazio, tudo vazio. Busca o relógio de parede do apartamento dela: onze e meia da manhã. MERDA, repete. Perdeu os movimentos dela da noite, do despertar, e da manhã antes dela sair. MERDA! Não se conforma. O interfone toca: Sim, pois não?!, O porteiro do prédio, sem disfarçar um leve tom de ironia na fala: Seu Samuel, tem uma pizza aqui embaixo, diz que é para o senhor. Está aqui desde ontem à noite. Está fria, o senhor ainda quer?! O entregador deixou um bilhete dizendo que passa mais tarde para pegar o dinheiro. Quer que eu ponha aí na sua porta?! O senhor me alcança o dinheiro por baixo da porta, pode ser?!, Maldito porteiro, retruca entre dentes. Maldito porteiro. Desliga o interfone, tosse contido. Pega o caderno, a caneta, os pensamentos deslizam, resvalam, não tem nada para dizer, para contar, para escrever. E se acontecer outra vez?! Não pode, não dará em boa coisa. Perderá tudo o que conquistou. O que vem conquistando. O que jamais conquistará. O que tem, o que não tem, nem nunca terá. Sente vertigens. Vai até a cozinha, bebe um copo de água. Tem de escrever, tem de tentar. Terá de esperar até ela voltar?! Não, não há tempo! Ele quer agora. Tudo para ontem, o louco. Liga o computador, espera a máquina se ajeitar, sem nada pensar, pestaneja, pestaneja, pestanejar; começa, assim mesmo, a teclar.

sexta-feira, 23 de janeiro de 2009

Momento décimo sétimo

E as coisas deveriam estar todas em seu lugar, proclama. Tudo tem um nome. Para tudo, um lugar. Confortável pensar assim. Especial. E com o que é especial como é que faz?! Pede-se que se rejeite?! Para se ter de volta em outra vida?! E o que pode ser trocado?! O que muda, metamorfoseia-se?! Deve ser tolerado?! E o abstrato, quem explica?! Deve ser redimensionado, reencaminhado?! E o que ainda não foi criado?! Passa a pertencer a quem, a qual lado?! E o que ainda não foi descoberto, já está mas ainda não há, deve ser considerado?! Existe só o que se sabe que existe?! O que se ignora não pertence à historia?! Não pertencerá?! Vinte e sete anos pensando e nem uma certeza. E a pizza que não vem! E ela que não chega!! E a lente que está suja!!! Fome. Sede. Suor. Frio. Tremor. Tremor. Calor. Frio. Tremor. Náusea. Temor. Calor. Temor. Frio. Náusea. Tremor. Temor. A sala a rodar. Flutuar. Flutuar. Acima de si. O corpo. Suor. Frio. Calor. O corpo. Tremor. Girando. Girando. Acima de si. O corpo. O corpo. Caindo. Caindo. O corpo. Dentro de si. Sem ar. Sem ar. Temor. O corpo. Suor. Tremor. Sem ar. Sem ar. Dentro de si. O corpo. Acima de si. Suor. Tremor. Frio. Calor. Dentro. Girando. O corpo. Caindo. De dentro. O corpo. Sem ar. Suor. Suor. Sem ar. Sem ar. No chão.

segunda-feira, 19 de janeiro de 2009

Momento décimo sexto

Precisa tomar fôlego: coragem é sair de casa e descobrir que tipo de gente anda por aí. Carregando coisas. Elevando mentes. Destruindo instantes. Coragem é ser sem parar. Querer saber o que é que há. Infringir sem machucar. Coragem é desmoronar para o desconhecido. Ir em busca. Ser um ser vivido. Deixar-se ir pela libido.

Fecha o bloco de notas e vai até a porta da rua. Encosta no trinco; força de leve. Escorrega. A mão suada. Retira-a rápido. Vai até o telefone e pede uma pizza. Volta ao sofá aliviado.

domingo, 18 de janeiro de 2009

Momento décimo quinto

E pensava que podia ser mais ou menos alguém na vida. Desses que trabalham, trabalham, trabalham e se aposentam; abusam um pouco do álcool e cuidam da família. Mas sabia que jamais seria assim. Nascera invertido, dizia a avó. Queria mesmo era inventar algo e viver disso para o resto dos tempos. Abdicaria de tudo por um oportunidade dessas. Queria ser útil uma vez, para que pudesse ser servido pelo resto do tempo. O tempo elemento. Pouca coisa para fazer e uma vida inteira para gastar. Chegou a esboçar alguns inventos; até dar-se conta de que não há mais tempo. O tempo argumento. Nada dura mais que quatro ou cinco temporadas. O tempo ampulheta. E ela que não chega. O tempo apartamento.

Momento décimo quarto

Agora as manhãs são sempre próximas em conteúdo. Despertar; remexer os cabelos, negros, longos, cheirosos, por suposto; ir até a cozinha; beber um copo de água; espreguiçar-se outra vez, mãos para o alto, braços longos tensionados, axilas traçadas a mão por Rodin; boca apertada, em coração, suculenta; olhos grandes, expressivos, puxados de leve nas pontas, dizentes.

Senta-se com graça no sofá da sala. Recosta a cabeça. Descansa, mira o
teto, fecha os olhos, sonha. Em menos de cinco minutos está de pé outra vez. Camiseta regata branca, muito justa no corpo; calcinha branca; nádegas em forma estilizada de músculo cardíaco; pernas longas, muito lisas, prontas para o que vier; pés direto no chão. Veste-se. Pega uma fruta, sempre mais ou menos esférica: maçã, pêssego, pêra, ameixa; anota alguma coisa em um pequeno Moleskine vermelho, recheia a bolsa com um porção de envelopes, ora brancos, ora pardos, e sai.

Momento décimo terceiro

Chega só, com ares de cansaço e mãos vazias. Vai até a cozinha, abre a geladeira e serve um copo de água. Bebe sôfrega. Serve outro e repete o ato. Como é linda. Queria ser aquela água, pensa. Molha os lábios com a língua. Ela se despe, vai até o banheiro, entra no boxe, liga o chuveiro e ele escorre por entre os seios dela. Percorre a barriga, contorna o umbigo, encontra os pêlos pubianos. Poucos, bem traçados. Aguarda uns segundos por ali e segue em direção ao clitóris; contorna-o de leve, macio. Segue pelos lábios vaginais, caminhos tortuosos, embora sublimes. Passa por todas as voltas, quase retas, saliências, reentrâncias; acaba nas coxas; desce solto, rápido, alegre. Uma parada do joelho, o contorno; belo, um convite. Segue o baile rumo à canela; tornozelo; pé. Um sonho, o pé. Chega ao piso, frio. Rumo ao ralo, flui lento e satisfeito. A partir de agora o mundo pode desmoronar. O que vier é lucro, balança a cabeça olhando para o teto. Abotoa as calças, ajeita a camisa, seca o suor da testa com o papel toalha que está sempre por perto, e volta à luneta.

Momento décimo segundo

E pensa que pode jurar. Qualquer coisa. Jurar é um ato heróico, pensa. Tinha de jurar. Tem de jurar. Tinha sim. Tem sim. Resolve procura-la para pedir algo parecido com desculpas; mesmo que não seja. Insere-se em seus pensamentos por mais uns minutos, horas. Desculpa-se a si mesmo e arremessa-se para fora.

Eu tenho vinte e sete anos, diz a si mesmo, moro neste apartamento pequeno, gosto de ler e pedir perdão. Coca-cola pela manhã e café puro à noite. Gosto de dizer o que penso, assim, na cara, só que para mim mesmo. Gosto dos jornais mas não gosto das notícias. Tenho uma verruga, duas tatuagens, cinco
idéias, setenta e três reais no bolso e pouco mais de vinte mil no banco. É, eu sei, difícil explicar os vinte mil, mas... Ops, ela está de volta...

terça-feira, 13 de janeiro de 2009

Momento décimo primeiro

Diz a mitologia grega que Ártemis, a deusa da Lua, certa vez enviou um escorpião para matar Órion, filho de Poseidon, o deus do mar. Indignado, Zeus, deus de todo o Olimpo, transformou os dois em constelações que estão até hoje no céu. Quando Órion surge no horizonte, o escorpião desaparece. São histórias assim que vemos com o telescópio, apto a nos mostrar, ainda, estrelas duplas e triplas, galáxias e nebulosas distantes.

De minha parte, pensa, em essência, estou atento à uma nebulosa distante, especial. Trata-se de um corpo estelar, leve como uma nuvem, sensualmente composta. Misteriosa, porém.

quinta-feira, 11 de dezembro de 2008

Momento décimo

Rasga em pequenos pedaços as páginas do jornal do dia, colocando-os dentro de um chapéu virado jogado ao chão logo a sua frente. Queria poder vigiá-la vinte e quatro horas, sete dias por semana. Podia implantar um chip no cérebro dela enquanto estivesse dormindo. Queria poder tê-la para si. Queria ser a granola dela pela manhã, entrando em sua corrente sangüínea e virando nutriente e energia para mantê-la em movimento e, assim, acompanha-la de perto ao longo das horas, dos minutos, dos segundos, dos anos; apreciando em análise todas as suas sensações. Queria ser sua pele, suas narinas, seus olhos, seu cérebro, seu sexo e seus ossos. Não queria nunca mais sair de dentro dela; fosse ela quem fosse; amarga, extrovertida, concupiscente ou doce.

Basicamente, o
voyeurismo é uma maneira de realizar os próprios desejos através de outras pessoas. É típico de quem não se sente apto a satisfazer as próprias vontades por inibição ou alguma dificuldade.

terça-feira, 9 de dezembro de 2008

Momento nono

No começo voltava para casa sempre no mesmo horário. Agora tem cometido atrasos. Cada vez mais longos. Atrasos que enlouquecem a quem só pode se fazer esperar. Estaria envolvida em atos terroristas? Estaria louca de atar? Estaria fugindo de algum obsceno olhar? Não! Não poderia ter sido descoberto. Que tipo de desejo despertaria se isso acontecesse?

Qualquer um pode ser voyeur, mesmo sem se dar conta disso. Conforme estudos psicológicos a respeito do assunto, até a fofoca é uma forma de voyeurismo.

segunda-feira, 27 de outubro de 2008

Momento oitavo

Nem cabe negar, tal o desenvolvimento tecnológico, que os aparatos derivados de tamanha genialidade, há pouco relatada, promoveram profunda multiplicação dos modos de olhar. A máquina se interpôs e fez o olho alcançar o todo, ampliou fragmentos, desejos.

Eu, o voyeur. Do francês voir, ver. Não estou a suspeitar de crimes, tal Jeff em sua Janela Indiscreta. Mas há mistério. Sou desta prática antiga, do indivíduo a conseguir obter prazer por manter olhos abertos. Sim, ver com prazer não é novidade: pergaminhos japoneses do século VII já faziam referência a um concurso de tamanhos; mulheres por detrás das cortinas. Gravuras chinesas, por sua vez, nos revelaram também. Vocês e eu também adeptos, cada qual, voyeur.


Ainda não retornou. Presumo que está envolvida, apesar da ausência de atos suspeitos em casa. Comete-os nas saídas, aposto. Registro aqui a expressão mudada dos últimos dias; transtornada até. Sigo a esperar, aguçado e repetido olhar. Tudo para conhecer e desvendar. Isso apetece o apelo que me move, comove.

terça-feira, 14 de outubro de 2008

Momento sétimo

Não é, portanto, exagerado dizer que a revolução intelectual-científica e filosófica dos últimos trezentos anos tem como um de seus fundamentos a invenção da astronomia observacional com instrumentos ópticos por Galileu e das descobertas por ele inauguradas.

Olha para o
teto, como a orar, passa a mão no punhado de envelopes espalhados pelo sofá da sala, meto-os no bolso interno do casaco, ajeita a gola para cima, abre a porta e agride a rua.


Momento sexto

Questionamento que por sua vez constitui o terreno intelectual de toda a filosofia moderna, inaugurada por Descartes, admirador e contemporâneo de Galileu com seus princípios Ergo logo sum (Penso, logo existo) e Omnia dubitantur est (tudo pode ser posto em dúvida).

Vestida, ao que parece, pronta para sair de casa, ela pára, abaixa-se para pegar um estranho livro de capa verde-musgo de cima da bela mesa de centro em aço frio e escovado e madeira escura de demolição, cheia de marcas do tempo e vincos de vidas passadas. Ergue-se, abre o livro aleatoriamente, lê uma página ou duas. Fecha-o e recoloca-o com cuidado onde estava.

Momento quinto

Veste-se com precisão e vagar. Calça jeans, camiseta básica branca, camisa de flanela xadrez, em tons de vermelhos e azuis, botas e um casaco em couro castanho. Lá fora faz um frio seco; é inverno. Um risco de sol ameaça um desponte; é manhã de sábado.

É, sim, muito além; de um significado mais profundo e duradouro. Ao estabelecer um instrumento como mediador entre homem e mundo, abriu caminho para o questionamento da relação sujeito-objeto da metafísica tradicional.

segunda-feira, 13 de outubro de 2008

Momento quarto

Essa mesma descoberta observacional dos satélites de Júpiter criou o terreno científico para o chamado princípio copernicano que, mais do que dizer que a Terra gira ao redor do Sol, afirma que ela não é um lugar privilegiado do Universo, pois sequer é o astro mais pujante do próprio sistema do qual é um membro.

Limpa as mãos, as belas mãos, em uma toalha de papel; afasta-se do balcão, suave, límpida, em cristal. Quase a levitar. Aproxima-se do espelho, tira a transparência, percebe-se mulher. Sorri. Desajeitada e bela, sorri. Ela deve fazer parte de um sonho não merecido; mas entregue de bandeja, como que por descuido, por deuses distraídos. Sim, é a visão de quem jamais precisará de outro vislumbre na vida para continuar a ser feliz. Por todos os tempos.

sábado, 11 de outubro de 2008

Momento terceiro

Foi um trabalho intrinsecamente inaugural, o de Galileu. Em termos imediatos, a identificação dos satélites de Júpiter e das fases de Vênus tornou mais aceitável a idéia de que o Sol poderia ser o centro do sistema ao qual a Terra pertencia, abrindo o caminho para a constituição da física inercial, cuja forma acabada seria dada por Newton, em detrimento da física aristotélica.

Consegue ser suculenta até ao morder torradas com geleia de amoras. E o café preto puro, do outro lado da rua, a esfriar dentro da xícara.

Momento segundo

As observações de Galileu fizeram sensação em sua época. Galileu observou pela primeira vez os satélites mais brilhantes de Júpiter (hoje conhecidos como galileanos), identificou estruturas que posteriormente foram compreendidas como os anéis de Saturno, pode observar em detalhe as crateras da Lua, as fases de Vênus e que o céu possuía muito mais estrelas do que aquelas visíveis a olho nu. A repercussão do trabalho observacional de Galileu é, em termos históricos, incalculável.

Esta manhã ela parece mais bela. Um tanto lânguida a esvoaçar pela casa. Os cabelos soltos e prometedores de um dia carinhoso. Um dia delícia. Veste um baby-doll alvo e com a transparência ideal para passar dos limites do mistério. Ela mexe nos cabelos, passa a mão nos lábios de portentosas carnes de respeito. Mexe nos cabelos outra vez. Prepara o café da manhã ao balcão de aço escovado.


Momento primeiro

A Luneta foi inventada em 1608 por um artesão fabricante de óculos, cidadão holandês, mas nascido na Alemanha, chamado Hans Lipperhey. Não havia transcorrido ainda um ano quando Galileu Galilei, na Itália, teve notícia da invenção e construiu ele mesmo a sua luneta. Ao apontá-la para a Lua, Júpiter e Vênus, Galileu constatou que as concepções cosmológicas tidas como verdadeiras até aquela época deveriam ser revistas... Ele criou a ciência como a entendemos atualmente.

E eu a observa-la. Tentando ver e registrar tudo o que a minha bela e instigante vizinha faz; lance após lance; dia após dia.

Até chegar o momento de eu me encontrar prestes a decifrar um mistério.