segunda-feira, 26 de janeiro de 2009

Momento vigésimo primeiro

Ela, para o alívio total de Samuel, acaba de entrar em casa. Samuel relaxa. arrisca até um sorriso para si mesmo. Gruda o olho na luneta. Parece nervosa. Agitada. Anda de um lado para o outro. Nem tirou as roupas e nem foi para o banho. O que estaria acontecendo?! Estaria em apuros?! Aproxima-se da porta, faz menção de sair outra vez. Samuel nem acredita. Nem bem chegou... De repente volta-se, ela olha pela janela, direto para a dele. Samuel contrai-se, enrijece todos os músculos. Fica imóvel. Nem respira. Ela vai até a janela; olha direto para a sua janela. Samuel impávido. Ela permanece ali, parada; o rosto contraído. Parece brava. Até na braveza contém doçura, pensa Samuel. Abre o casaco em couro, enfia a mão dentro, puxa algo como um envelope pardo, amassa-o e atira-o pela janela. Em seguida, fecha, pela primeira vez, a persiana, com força. Quase arrebenta tudo. Samuel ouve o estrondo de dentro do seu próprio apartamento. Ele movimenta a luneta, vasculha a calçada; passa para o meio da rua, remexe os paralelepípedos com o olhar; encontra. Aproxima-se com o zoom, acerta o foco. Sim, é um daqueles envelopes que ela coloca na bolsa ou dentro do casaco todo santo dia, e sai. Só pode ser. Consegue ler alguma coisa escrita por fora do envelope: AO ME... Está amassado. DROGA, esmurra o braço da poltrona vermelha. DROGA! Pensa que dizer droga ao invés de merda é um resquício dos vários anos vendo filmes estrangeiros dublados, pela televisão. Malditos tradutores, resmunga. O mundo é mesmo um farsa, pensa, atirando o corpo para trás.

Fita o teto e remexe as idéias. Raciocina que tem de fazer alguma coisa, urgente. Levanta-se, retira o interfone do gancho e: Percival?! Não, é Lorival!!!, responde o porteiro com voz de mocotó quente parado na garganta. Ah, sim, desculpa, mas... é que eu preciso de um favorzinho... aqui é do quinhentos e um e... Como se eu não soubesse, resmunga o porteiro. Sim, pois não senhor, pode pedir?!, tentando ser impessional sem deixar de ser irônico. É que, é que... será que o senhor (o porteiro, assim como ele, não é um “senhor”, tem apenas trinta e dois anos, cinco a mais do que Samuel, mas ele não tem como saber disso)... será que o senhor poderia pegar (a voz embargada)... será que o senhor poderia pegar um envelope amassado que... bem... que está no meio da rua... bem, aí na frante do prédio e... hãm... trazê-lo para mim?! Se... se, é claro, não for muito incômodo, é claro (maldito porteiro)... Pegar o quê?! Onde?!, retruca Lorival. É que... bem, não, nada não... deixa pra lá... obrigado assim mesmo (maldito porteiro). Desliga o interfone e começa a andar em círculos dentro de casa, praguejando contra o mundo: malditos porteiros; malditos tradutores!!!

Um comentário:

Andréia Pires disse...

Li até o Momento décimo sétimo e achei ótimo. mesmo.:) logo volto para concluir a leitura. Aliás, a leitura é também uma forma de voyerismo, né?! as reflexões sobre o tempo, lá pelo momento décimo quinto, excelente. bjo, bjo.