sábado, 24 de janeiro de 2009

Momento décimo oitavo

Abre os olhos, a cabeça um pouco pesada. O corpo mais leve. O apartamento todo em branco. Bruma. Aos poucos, as formas voltando ao normal. Os móveis em madeira escura. Já estavam ali quando da compra. Os pais acharam conveniente um apartamento mobiliado. Menos trabalho. Muito mais prático. O preço: quase de graça, disse o pai. O então proprietário havia perdido a esposa, dois filhos e a mãe em um acidente, e queria se ver longe das lembranças. Ali ele operava encontros furtivos, fuxicava, na época, a vizinhança. Vendeu por muito pouco e, logo depois, foi internado em um manicômio. Daí, quando o resto da família se deu conta, nada mais podia ser remendado. Os papeis assinados, dinheiro recebido, comprovantes em dia. O negócio não podia mais ser desfeito.

E agora, lá está ele. As formas retornando lentas. Imagens abafadas de um absurdo pesadelo. Samuel se levanta do chão, apoiado ao braço do sofá verde musgo. Considera que tenha fome, mas não tem essa certeza. Um cheiro forte de urina no ar. A roupa molhada da cintura para baixo. Olha lerdo para o teto, para a janela, para a luneta... sente um arrepio por todo o corpo, solta um uivo, corre para a poltrona, senta, percorre o apartamento da frente através da pupila estendida: MERDA, grita. Vazio, tudo vazio. Busca o relógio de parede do apartamento dela: onze e meia da manhã. MERDA, repete. Perdeu os movimentos dela da noite, do despertar, e da manhã antes dela sair. MERDA! Não se conforma. O interfone toca: Sim, pois não?!, O porteiro do prédio, sem disfarçar um leve tom de ironia na fala: Seu Samuel, tem uma pizza aqui embaixo, diz que é para o senhor. Está aqui desde ontem à noite. Está fria, o senhor ainda quer?! O entregador deixou um bilhete dizendo que passa mais tarde para pegar o dinheiro. Quer que eu ponha aí na sua porta?! O senhor me alcança o dinheiro por baixo da porta, pode ser?!, Maldito porteiro, retruca entre dentes. Maldito porteiro. Desliga o interfone, tosse contido. Pega o caderno, a caneta, os pensamentos deslizam, resvalam, não tem nada para dizer, para contar, para escrever. E se acontecer outra vez?! Não pode, não dará em boa coisa. Perderá tudo o que conquistou. O que vem conquistando. O que jamais conquistará. O que tem, o que não tem, nem nunca terá. Sente vertigens. Vai até a cozinha, bebe um copo de água. Tem de escrever, tem de tentar. Terá de esperar até ela voltar?! Não, não há tempo! Ele quer agora. Tudo para ontem, o louco. Liga o computador, espera a máquina se ajeitar, sem nada pensar, pestaneja, pestaneja, pestanejar; começa, assim mesmo, a teclar.

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