terça-feira, 3 de fevereiro de 2009

Momento trigésimo quarto

(De rerum natura)
Quanto mais você se eleva da Terra, melhor. Eis uma bela razão para estudar Astronomia.

(Sobre a natureza das coisas)
Quanto mais Samuel estuda Astronomia, mais bela é a única razão para olhar para a Terra.

Eis a vizinha, pela sua vidraça. Exala a química da vida sem esquecer da física do mundo. Lentes que se enchem do que é pleno. Consegue lembrá-la toda, é digna de registro. A bem dizer não recorda qual foi o último livro que leu. Não esquece seus movimentos, aquece-se com eles. Lembra-se dos olhos, da pele, da nudez. Descansa, bela, talvez porque o dia amanhã vai lhe cansar. Uma luz suave no quarto, um sopro despenteia a camada fina da cortina.
Hoje tudo está bom, pela vidraça a... parece melhor.
Só por ela. Só. Ela.

segunda-feira, 2 de fevereiro de 2009

Momento trigésimo terceiro

Uma mulher de cabelos negros e soltos, bastante soltos, cruza com Samuel na esquina. Esbarram-se de leve. Ele segue a correr. Ela balança a cabeça, ajeita o casaco castanho, deixa cair um envelope. Querendo, assim, sem querer.

Momento trigésimo segundo

Quando Samuel completou quinze anos, a menina, no dia, lhe apareceu. Falava coisas desconexas, sílabas sobrepostas; meio sibilante, meio tatibitati. Não estava na parede do seu quarto. Estava na livraria. Saiu de dentro de um livro e ordenou que Samuel o comprasse. Não com palavras, mas com gestos. Samuel não se assustou. Não tanto quanto da primeira vez. Então já era adolescente, e adolescentes são falsos não fragilizados. Mas ficou perturbado. Por mera rebeldia, se recusou a adquirir o livro ordenado. A menina fez um sinal, sibilou algo truncado. Samuel entendeu: você será castigado!

domingo, 1 de fevereiro de 2009

Momento trigésimo primeiro

Entram. Quatro homens, uma mulher, dois cachorros. No meio da sala, ele, estático. Um dos cachorros, o branco, peludo, feito uma ovelha bonsai, já sobre a poltrona vermelha, com os dentes, rasga-lhe o braço estofado. O outro, malhado, de olhos esbugalhados e cara de velho demente, de perna erguida urina ao pé do abajur. Marcar território, conquistar. Homens e cães. Homens cães. A vizinha a falar sem parar. O chaveiro a exigir o seu dinheiro. Tem pressa, alega. Muitas casas para entrar. Deflorar. Homens. Homens sem mães. O zelador a tentar a todos acalmar. Lorival a rir; especular. Atento; arguto o olhar. Filhos. Todos. Filhos de mães. Cães. Filhos de mães; outras. Filhos de éguas; velhas; potras.

O porteiro vai até a janela. Curioso. Grita loquaz: Mas o que temos aqui?!, aproxima o rosto. Vai metendo o olho. Samuel arranca-se de si mesmo, solta um uivo de savana, atira-se para frente; a mão espalmada no ar; a luneta voando de lado; Samuel por cima do cão; a luneta caída ao chão.

A vizinha agora a gritar; argumentos em prol do seu lar; misturados ao uivo do cão, que, então, a Samuel tenta abocanhar. O chaveiro ainda na porta, dizendo que vai ter de matar se ninguém resolver lhe pagar. O zelador de mãos na cabeça, de repente fita um anel de prata sob a estante de madeira escura. Lorival, ao meter a cabeça para fora da janela, de dentro do bolso da sua calça amarela, deixa cair uma peça importante; Samuel vê, percebe o que é, e pega o envelope em um rápido instante. Treme por dentro, tenta se controlar. O suor, de todos os poros, passa a se derramar. Urina, urina, urinar. Consegue... consegue na bexiga a vergonha estancar. Levanta-se rápido e, antes da taquicardia chegar, lança-se porta a fora, a boca seca a secar. Dá dois passos no corredor, dribla a sensação de horror, desce as escadas, passa pela porta aberta do prédio, esbarra em alguém a entrar no portão, pisa na calçada molhada, aperta o envelope na mão, olha em qualquer direção e põe-se a correr, a correr, meio fraco, meio voraz, a correr e a correr. Sem sequer olhar para trás.

Momento trigésimo

Neste ano a Páscoa vai ser dia 12 de abril. É sempre o primeiro domingo depois da Lua Cheia de/logo após 21 de março, equinócio de primavera no hemisfério norte. Ess...a. Essa da Lua Cheia não é, em exato, real, real, mas a definida nas tabelas, belas. Eclesiásticas. Não levam à risca o movimento complexo, plexo da Lua, apesar de ser fácil calcular, cal, cu, lar.

Papa Gregório XIII; concílio de Nicéia; 325 d.C.; imperador, dor, romano Constantino. Regras deles.

A Páscoa nunca acontece antes de 22 de março nem depois, pois, de 25 de abril. Terça-feira de Carnaval, aval: 47 dias, dias, antes, antes da Páscoa, da Páscoa. Quarta-feira de Cinzas, Cinzas, Cinzas 46.

De volta ao que interessa, essa.

Janela, nela. Já, nela, dela, ela.

Restrigimo-nos aos nossos desejos pessoais e à afeição por, por, umas, umas, poucas pessoas, poucas, pessoas próximas. E daí, Seu Samuel, muel Luis borges?!

Foco.

O prédio treme. Essa. Ess...a. Ess’A. Ess’A Coisa. Embaralha, embaralha, ralha, ralha, ralha... Seu Samuel: vamos entrar!!!